sexta-feira

O que foste e o que nos escondeste.
Hoje, enquanto andei pela Capital do Grande Império em missão, do Restelo ao Mercado de Arroios, lembrei-me de si. Era assim que chamava a Lisboa, do alto do seu mau feitio e personalidade conturbada e fechada, sempre que nos despediamos ao Domingo, depois do chá e das torradas.
Tenho pena que tenha levado consigo um espólio considerável de aventuras familiares e uma vida de saltimbanco, gostáva de me ter sentado a ouvir algumas das histórias que acabou por contar a quem lhe amparou os últimos dias. Pelo que ouvi, foram anos animados, histórias de paixões e amores arrebatadores, posições e atitudes que ninguém o veria a tomar. Memórias que lamento não conhecer. É verdade que não me pertencem, mas sem elas é como se nos faltasse tanta coisa. Já que partilhámos o mesmo sangue, nome e mais que isso, o marcante mau feitio e espero que não a personalidade conturbada, como não quis dizer mais que uns grunhidos e retoques desagradáveis?
Ao senhor fidalgo apenas lhe interessavam os patos e as galinhas, os campos de cultivo, os jardins e árvores frondosas da casa de Sampaio de Merlim. As crianças nunca foram o seu forte, servem para se mostrar e educar com rédea curta. Mas fique sabendo que apesar de tudo, guardo até hoje o cheiro a lavanda que corria naquele corredor fresco e sombrio da sua casa e o cobria desde a perna estragada até aos cabelos prematuramente brancos e também guardo a esperança, lá no fundinho das minhas crenças, que se existirem outras vidas nos vamos encontrar e me vai explicar o porquê de levar a vida que levou.
Em cada um de nós reside um bocadinho de si, as histórias que viveu moldaram-no e determinaram a forma como nos via e sentia. E tudo isso, contribuiu para o que sou hoje. Os pés de pato e tortos são seus, as manchas na cara também, o feitio desconfiado é culpa sua, a rudeza de espírito pertence-lhe, então porque me obrigou a apaga-lo?
Na minha arca dos afectos, em relação a si, passei por todas as fases, a que não compreendia nada e para mim eras mais um velho rezingão que às vezes me pegava ao colo e sempre longe de olhares suspeitos, o nada sentir, senão o medo que o teu olhar frio me provocava, a revolta por seres desagradável e mau. A opinião que não passavas de um velho conservador, fascista e que não representavas nada senão o que deveria ser combatido por todos nós: a intolerância e falta de amor pelo próximo, e pior, a falta de amor por ti, que te fechavas a todos e encaravas a vida como uma cruz pesada que carregavas.
No fim, cheguei a ter compaixão por um velho que queria apagar o que fez de mal, que queria reunir a família não por ser obrigação tua e nossa, mas porque até nutrias alguma afecto pelos "teus"! Nunca fomos teus, nem tu nosso, nunca me senti pertencente à tua vida, porém agora, quando me lembro de ti e procuro outros caminhos, tenho pena de não te ter ouvido como eras, de ter visto o que habilmente escondias de todos. De pelo menos ter conhecido partes da tua vida, das tuas memórias!
Para a posteridade fica a maldade que creio te tenha sido intrínseca.
Podias ter partilhado a sabedoria que acumulaste, as paisagens que viste, as conversas que tiveste, os caminhos que trilhaste e as gentes por quem passaste. No entanto, escolheste fechar todas as portas, escolheste o caminho fácil que é criar conflitos em vez de erguer pontes.
Pois fica sabendo que de ti também me devem ter ficado coisas boas, fica sabendo que não verti uma lágrima por ti e que o melhor que poderei fazer que honre a melhor pessoa que podias ter sido é não esquecer que somos feitos da mesma matéria e não deixar que essa ira irracional que anda à solta nos genes e história familiar tomem conta de mim como fizeram contigo.
E pronto, está resolvido o velho manco e rezingão!

3 comentários:

Anónimo disse...

Prendeste-me aqui a ler isto tudo de uma ponta à outra. :) Ainda vamos a tempo de beber mais umas cervejas? Bem, se não te vir antes, vemo-nos em Sines. Beijo. Patrícia.

Mariny disse...

Sempre! Mas em Sines parece-me melhor sítio. Precisamos de mudar de vistas;)

Gata das Botas disse...

Detenho-me só nos teus posts pessoais. No das caixinhas, no dos irmãos, nos do trabalho,...
Não me interessam os gato fedorento ou o Sol.
Mas tu interesssas-me. "Atrapas-me". Encurralas-me nos meandros da memória e do sentir.

Sobre este post tenho que te dizer: é peciso tomates.
É preciso tomates, de aço e no seu sítio para poderes despedir-te desde a tua varanda. Despedir, sim, mas sem baixar à rua onde correm águas de que não gostas.
Admiro a determinação. Gosto do tom. Aprecio a capacidade de separar trigo, joio e outros.
Dás-me vontade de pensar nas minhas despedidas. De pensar em mim.

És a narradora de um filme que podia ser de qualquer um. COm o qual é fácil indentificar-se. Com o qual é fácil empatizar.
Mas é o teu. E eu acho que a direcção artística dele merecia o Òscar.