O tema do Clube de Jornalistas desta semana prendia-se com a precariedade dos jornalistas. Jornalistas mal-empregados, assim se intitulava o debate. Confesso que não vi a maior parte do programa, mas o bocadinho que apanhei deixou-me a impressão que apenas se constatou factos em meias palavras.
Todos sabemos que o jornalismo precário existe e que pior que isso, existe uma grande discrepância entre os jornalistas, uns ganham salários milionários, outros estão no intermédio e os restantes, a maior parte, digo eu, andam sempre com a corda ao pescoço. Sabemos também que a entrada no mundo do trabalho é complicada e muitas vezes impossível e mais grave que tudo isto, e ainda bem que os intervenientes o admitiram, que na classe jornalística existe uma falta de solidariedade enorme e um aceitar do estado das coisas como se este fosse inevitável ou natural, quem se safa, safo está, quem não o fez que se tivesse feito à vida.
Triste. Quando fiz o meu estágio curricular senti realmente uma falta de solidariedade para com os estagiários, pelo menos estes, já que esta era a minha condição. Esta parte da discussão dos jornalistas estagiários, apenas apanhei o fim e o que apanhei entristeceu-me. Para o director da redacção da Lusa, presente neste debate, é normal que os estágios curriculares existam e são até justificados. As universidades pedem aos jornais para que os seus alunos tenham formação em tempo real e em contextos à séria nas redacções e portanto, este estágio faz parte da nossa formação e é apenas celebrado pelas universidades e pelas empresas de meios. Ora, isto é fazer-nos de parvos. Basta ver alguns anúncios para recém-licenciados nos portais de emprego para perceber que os estágios curriculares são a maior invenção dos últimos tempos e que não se ficam pelo protocolo celebrado entre as faculdades e os jornais. São prática comum e corrente, levados a cabo sem qualquer regra ou monitorização das faculdades, das empresas ou por quem quer que seja.
Os estágios curriculares são bar aberto no jornalismo nacional, sem rei nem rock. São uma desculpa para suprimir a falta de pessoal nos quadros, porque as empresas não querem contratar mais profissionais para assegurar o que é preciso fazer para colocar mais uma edição cá fora.
As peças que os jornalistas estagiários produzem são publicadas e usadas na edição em causa como todo o restante trabalho feito pela redacção, podem ter menor importância por razões óbvias e lógicas, menos destaque, porque são menos importantes, mas asseguram uma parte essencial da publicação, no entanto não são pagas ao estagiário, ficamos pelo almoço e pelo subsídio de alimentação.
E a naturalidade com que tudo isto e muito mais se passa é de bradar aos céus, porém, num país de brandos costumes como o nosso, não é surpreendente.
Depois desta situação de trabalho não pago, para a precariedade, aqui sim precariedade laboral, porque a anterior situação é escravatura, exploração pura e dura vai um salto. Não existe respeito pelo trabalho do estagiário, passada esta fase e já na profissionalização, não existe respeito pela sua vida, pelas suas expectativas e pelo seu futuro, bem como pelo seu desempenho. Ficas a recibos verdes durante dez anos e mais nada e se arrebitas cachimbo, ficas sem trabalho.
Todo este processo é intimidatório. Enquanto estagiária sabe-se o quanto é difícil furar para entrar, sabe-se quantas horas se tem de trabalhar sem nada receber em troca e muitas vezes, nem uma formação decente acompanhada existe, como profissional com carteira a coisa não melhora muito. Mas já vamos todos mansos, vamos todos orgulhosos e contentes porque fomos escolhidos entre mil, porque conseguimos exercer a profissão e vencer num meio tão competitivo e duro e com a conversa do costume. Se não quiseres este lugar há muito quem queira, anda para a frente que atrás vem gente.
Por outro lado, não compreendo a posição do sindicato de jornalistas perante tudo isto, não percebo o porquê de nas faculdades não se debater a realidade dura da vida profissional de um jornalista, da precariedade presente e do desrespeito perante os estagiários. Pelo uso e abuso do estágio curricular, pela sua desvirtuação reiterada, pelo lavar das mãos de todos os actores deste filme dantesco.
Nos 25 cursos no campo da Comunicação deste país educam-se e formam-se massas acríticas e acéfalas, criam-se e alimentam-se sonhos não concretizáveis, não porque as pessoas tenham mais ou menos talento, não porque não tenham grande consciência do exercício da profissão, mas porque o ensino é podre e ultrapassado, pouco ou nada ligado ao mundo real e ritmo de uma redacção. Nunca nenhum professor me disse que tinha passado por situações precárias ou que as vivia naquele momento, nunca as discussões foram verdadeiras, porque nunca ou raramente vi jornalistas e intervenientes a assumirem as coisas como elas são. Precárias, desiguais e exploratórias.
O mercado é assim, o problema está nas grandes empresas dos media que concentram em si inúmeros meios distintos, rádios, jornais, televisões, portais de internet, produtoras de conteúdos. Sim, é uma realidade pesada de se ultrapassar e muito difícil de analisar e resolver, mas os direitos básicos laborais dos jornalistas são esquecidos pelos próprios pares, os maiores predadores dos jornalistas são eles próprios que desrespeitam reiteradamente a sua classe, os seus pares e o seu próprio trabalho, ferindo a classe e a sua dignidade. Muito porque são vaidosos e se dão demasiada importância, só olham para o seu umbigo, porque se tem em muito boa conta e se acham pedras e provedores da democracia, quando são os próprios a feri-la de morte.
Ferem-na de morte, porque não são solidários, porque não são reflexivos, porque não respeitam os seus princípios básicos e compactuam com o estado das coisas porque são os primeiros a serem força de bloqueio, cães de guarda do poder estabelecido, perdendo a sua independência e objectividade possível no exercício da sua profissão. Também os primeiros a não falarem sobre a precariedade do exercício da sua profissão. Aliás, para que tudo isto se comece a discutir é necessário que o novo estatuto ameace o exercício da profissão gravemente e as preocupações destacadas pelos jornalistas na redacção das notícias sobre a aprovação do estatuto sejam o facto de qualquer pessoa mesmo não licenciada possa aceder à profissão.
Preocupações a meu ver menores, já que foi assim que se começou a exercer jornalismo e o facto de as pessoas serem licenciadas ou não, não determinar um exercício excelente da profissão. Quanto e quantos jornalistas formados não são nódoas gritantes no jornalismo, quantos licenciados em jornalismo não se deviam dedicar a outra profissão, por não terem qualquer noção do que é o jornalismo, por não saberem escrever e mesmo reflectir e analisar os assuntos, por não conhecerem os princípios básicos de uma notícia ou por simplesmente não fazerem ideia do mundo onde vivem.
Não escrevo tudo isto porque estou ressabiada ou ferida de morte por não conseguir exercer a profissão que escolhi, escrevo este texto com a consciência que a precariedade no exercício e a impossibilidade de acesso ao jornalismo serem de facto discussões essenciais na sociedade actual e que primeiramente deverão ser debatidas pela própria classe e incluindo os recém licenciados para que assim estes sejam mais que massas amorfas prontas para dizerem Ámen a tudo o que se passa e a tudo o que lhes é proposto.
O jornalismo existe para informar e esclarecer os cidadãos, existe para que se tenha uma sociedade plural e mais esclarecida e por isso é inaceitável que ajam jornalistas que se recusem a dar o seu depoimento para o debate com medo de represálias, que existam profissionais que depois de contribuírem para o programa desta noite, peçam para serem retirados do programa.
Perante este exemplo é fácil perceber que caímos no fundo do poço, chegamos à recta final e que mais baixo que isto não podemos descer. Se um jornalista não pode falar abertamente sobre a sua experiência profissional e a realidade de todos os dias, mais nenhum trabalhador o deve fazer, mais nenhum cidadão se sentirá seguro ao falar das suas condições de trabalho. Não que o jornalista seja o exemplo imaculado e democrático que o cidadão comum deva seguir, mas se aquele que domina e conhece os meios de comunicação, meios privilegiados de difusão de ideias, debates, opiniões e realidades não se pode exprimir livremente, então, meus amigos, fechem as lojas, porque afinal a censura existe e está viva nos nossos espíritos e existe no nível mais básico, ferindo os nossos direitos adquiridos nas últimas décadas, não só enquanto jornalistas, mas enquanto cidadãos.