Dói-me a cabeça de tanto barulho: "é você e mais quem e usa internet, ouve rádio, qual?"Uma infinidade de perguntas inúteis e fúteis que rendem todos os dias o meu salário várias vezes, suspeita infundada mas que não é assim tão impossível de se dar. Vigio, guardo, direcciono um rebanho, uma horda de gente faladora e maçadora, mc´s sem tempo para respirar, lançam os melhores e mais cuidados flows, num discurso sempre igual, ora rápido, ora lento, mais alto ou mais sussurrado. Vozes simpáticas, ansiosas, dengosas escorregam pelos fios ópticos da PT directamente para sua casa.
Há dias em que a orquestra está realmente bem afinada e falam todos ao mesmo tempo, "o meu nome é ??? e estou a ligar da ???, que é uma empresa de ??? e tal e tal". Desconfio que não haja orquestra de génese espontex tão coordenada como esta! No entanto, duvido várias vezes das capacidades de aprendizagem de muita gente, conseguem decorar, mas tem graves problemas em resolver situações de conflito ou factos inusitados. Aquilo que poderia dar algum, mesmo que pouco prazer quando aqui estamos armados em autómatos seria o facto de do outro lado estarem pessoas como nós que muitas vezes têm relutância em serem tratadas como números de telefone, das quais apenas interessa a idade e o sexo e por isso, subvertem todo o telefonema. Daí tirei o relativo gozo possível de alguns meses de telefonemas anónimos e estatísticos, personagens e reacções várias, malucas, eram essas que me faziam recordar um pouco das 3 ou 4 horas que teria passado ao telefone. Sim, porque de resto, saía de lá e passado 30 minutos já nem sabia o que tinha estado a fazer, onde tinha estado a trabalhar.
Agora o trabalho não sai tão facilmente de cima, antes fosse, agora e várias vezes, mais do que desejaria ele dorme comigo. Dormes sozinha todos as noites? Não, tenho o trabalho! Não aquece os pés, não faz festinhas, apesar de não cheirar mal da boca não deixa dormir e invade os meus sonhos sem pedir licença.
Para falar dos que aqui se sentam durante estas 4 horas e incessantemente telefonam e maçam seriam precisas umas quatro ou cinco horas, cada um com a sua particularidade, há para todos os gostos. Ora de olhos parados e esbugalhados como quem daqui quer sair a voar, ora energéticos e novos, velhos e cansados, bancários, administrativos, estudantes e vendedores, há de tudo aqui. espelham a vida actual pelo simples facto de trabalharem mais todos os dias do que descansam, do que se divertem, do que se podem entregar ao ócio, ao divertimento, ao saber ou ao conhecimento ou tão simplesmente aos de quem gostam, ao passeio descontraído pela cidade ou por outras paragens, em troca, têm carros, casas, roupas e hábitos, contas para além do que poderiam suportar.
As semanas de selecção de novos colaboradores é uma risota pegada, também uma canseira, dificilmente quem vem às entrevistas tem vontade de falar sobre a sua experiência profissional ou do que o poderá motivar para ter mais um trabalho ou apenas este, também fico com a sensação que não sabem muito bem o que procuram, havendo mesmo pessoas que não sabem ao que vêem. A propósito desta última tive uma senhora que chegou uma hora atrasada à conversa que tínhamos marcado, lá se sentou na sala e quando comecei a explicar as condições e o horário do trabalho, a senhora não tem mais nada, levanta-se da sala e entre um fracamente entoado "Não estou interessada" sai da sala.... A minha alma de tão parva que ficou deixou-me sem reacção possível, desejei-lhe boa tarde e até lhe agradeci por cá ter vindo, Agradeço ainda hoje pela sinceridade e por me ter mostrado mais um tipo de pessoas, aquelas que tendo emprego, são esquisitas em fazer o que tem que fazer, sustentar-se a si e talvez a outros.
Nesta sala, maior parte das pessoas trabalham 12 horas por dia, quando aqui chegam às 6 ou 7 da tarde, trazem caras cansadas e corpos pesados, já tiveram a sua dose de exigências, ordens e patrões, tarefas, reuniões ou apenas e tão só o passar dos dias.
Tenho pena de não existir na sala uma janela com vista para a rua, só vejo destas três e grandes janelas o prédio da frente e as traseiras dos vizinhos, não se passa nada, é uma cidade fantasma, como está mau tempo os gatos não saem para se estenderem nos telhados, ninguém põem a roupa a secar ou usufrui dos pátios de rés do chão!
O movimento é aqui dentro, raras vezes existem momentos de silêncio absoluto, mas também os há e nessas alturas não se ouve uma mosca aqui dentro, todos param para ganhar fôlego, sem gente com quem falar do outro lado, o manto do calmo silêncio cai por aqui e é muito bem-vindo, por mim, porque daquele lado, poucas vezes se apercebem que ninguém está a falar, estão todos caladinhos, a descansar as cordas vocais e os olhos que parecem ventosas coladas ao monitor que lhes mostra sempre o mesmo script, a mesma lenga-lenga. Estas lengas-lengas instalam-se facilmente no nosso espírito como que por magia, lembro-me que na altura que as recitáva tinha pena de não decorar tão facilmente a matéria de Economia como decorei esta lenga-lenga que todos dizem literalmente e não raras vezes de olhos bem fechados.
Olhos bem fechados é o que temos de ter enquanto mortificamos mais um pouco a alma, enquanto mais um dia nos sentamos em call-centers, servimos cafés, aturamos chefes chatos, não entendemos certas e determinadas directrizes e nos interrogámos porque é quem trabalha não tem mais não detém mais do que produz?
Pode parecer uma questão ultrapassada, marxista até, mas nunca ninguém me respondeu até agora de forma satisfatória. São mais 40 anos!